-Bom dia, queridas crianças... – Saudou Fraëa.
- Já lhes contei como fiquei cega? Pois então, larguem seus instrumentos, hoje a aula será diferente... – E os olhos dos pequenos elfos brilharam de excitação - Muitos de vocês conhecem os Druidas de nossa vila, alguns são até filhos deles, não é mesmo? Pois bem, assim foi comigo também, quando tinha vossa idade...
- Quando eu era apenas uma criança tola, com meus 25, anos de idade, minha tia Emel... Calma crianças, ouçam com atenção. – interrompeu-se Fraëa - Como eu dizia, quando era apenas uma criança, tia Emel sempre dizia, “fique longe das coisas dos Druidas, Druidas não são tão brincalhões como os bardos, que tanto adora, respeite-os, e eles a respeitarão!”
- O que houve? – Perguntam as crianças, levantando-se de excitação.
- Com calma chego lá, sentem-se... Nesta época, eu costumava ouvir AhDul, o Afiado, como vocês o fazem, hoje aqui comigo. – Falou, e as crianças olharam com cara de espanto, AhDul fora o mais encrenqueiro e desbocado Bardo que a vila já vira, até encontrar seu fim, na espada de um taverneiro qualquer - Naquela época nós crianças não tínhamos lições sobre todos os assuntos, escolhíamos um, e o seguíamos. Tia Emel ficou desapontada quando escolhi ser Barda, mas não me criticou, e até disse que tinha uma linda voz.
- Eu tinha também outros tutores, mas me afeiçoara a AhDul. AhDul costumava nos incentivar a fazer o que os outros nos proibiam, dizia-nos que o mundo era dos curiosos. Se soubesse as conseqüências da curiosidade irresponsável, não viveria no escuro.
- Oh! – chocaram-se as crianças.
- Em alguns anos, aprendi a contar histórias e também a cantar, enquanto tocava esta harpa. – E uma harpa de prata surgiu em sua mão esquerda – Nesta época, os anciões acharam por bem que nós, jovens, aprendêssemos também um pouco das outras artes. Nem todos gostaram da idéia, os Druidas são muito fechados, e não gostam de dividir seus segredos. Ensinaram-nos o básico, como sentir o cheiro do vento e prever a chegada da chuva, a cuidar de amigos feridos, até que os curandeiros chegassem, e também como é importante cuidar da floresta e dos seres que nela habitam. Nunca nos ensinavam, porém, coisas mais complexas, ou deixavam que nos aproximássemos da Clareira do Druida.
- Eu gostava das aulas com os Magos, mas eram muito metódicos, preferia os Feiticeiros, que deixavam a vida fluir de modo mais natural. Tive também aulas de Arquearia, que me deixaram em dúvida se queria mesmo cantar e contar, para todo o sempre... Com as espadas nunca me dei bem, mas o básico me foi ensinado. Aprendíamos também com os artesãos, que nos ensinaram a beleza que as coisas podiam ter, com os Clérigos aprendemos sobre os deuses, e a criação das raças e do universo... Ouvíamos, também, histórias sobre outras profissões, umas mais belas, como os Nobres Paladinos que costumavam residir em Bantur, e outras um pouco menos nobres...
- Sempre gostei de aprender, acho que é por isto que gosto de ensinar... Mas, para todos os bons conselhos, sempre tinham as contrapartidas de AhDul. Ele era um Mestre dos contos, não cantava muito bem, mas contava como ninguém. Sempre nos contava histórias fantásticas sobre ladrões, que roubavam, aos poucos, todo o tesouro de Enormes Dragões... Infelizmente, só depois que fiquei cega, é que perguntei a ele o que acontecia depois que eles roubavam o tesouro. Não gostaria de ter o destino deles...
- OH! – Gritaram as crianças.
- FRAËA, VOCÊ AINDA NÃO NOS CONTOU COMO FICOU CEGA! – Gritaram algumas.
- Ora, não sejam apressadas, crianças! – Ralhou a Tutora – Falta pouco, já chego lá...
- Tia Emel já era, naquela época, a Curandeira mais experiente da vila. Eu conhecia alguns outros Druidas, e conhecia o suficiente de seus hábitos, para saber que alguns se dedicavam a cura, alguns aos seus animais, enquanto outros gostavam de virar animais, ou ainda canalizar a magia da terra e alterar a verdade a sua volta.
- Emel é a mais complacente Druida que conheci, deixava seus livros e pertences guardados, mas nunca me impediu de vê-los, tocá-los ou até lê-los. Só existia UM livro que nunca me deixou encostar, disse-me que nele existiam Runas, e que sempre que as visse, deixasse de lado a curiosidade. Seguindo os ensinamentos de AhDul, achava minha tia uma tola. Buscava de todas as formas possíveis descobrir o que significava e, um dia, descobri o significado de uma combinação de Runas.
- Tudo bem, Fräea? – perguntaram as crianças mais atentas. Fraëa havia suspirado, e controlado o choro.
- O que diziam as Runas? – perguntaram as outras crianças.
- Tudo bem, queridos, já devia ter me acostumado com meu passado. – um momento de pausa, e prosseguiu – As Runas diziam “Brilho do Sol, Cegue o Inimigo” – A voz da Elfa era triste, e cheia de emoção e arrependimento, quando duas lagrimas rolaram por seu rosto. – E então as Runas Brilharam, e o mundo escureceu. Acordei quatro dias depois, com uma venda nos olhos, e Emel ao meu lado. Estava aflita, e pedi que Emel retirasse a venda de meus olhos, não agüentava mais a escuridão. Percebi que Emel chorava, e me pedia desculpas por ser tão descuidada. Pelos sons descobri que haviam outros no quarto, ou onde quer que eu estivesse. Reconheci algumas vozes, eram os Druidas, eu devia estar na Clareira do Druida. Parei e ouvi, como faria para sempre, daquele momento em diante.
- Alguns diziam: “Como pode deixar o Livro de Runas descuidado, Emel? Crianças não deveriam chegar perto dele! A menina está cega, e nem mesmo você pode curá-la” – Enquanto outros diziam: “Não se preocupe, Emel, acharemos uma cura, a culpa não é sua, a menina sabia que não deveria ler as Runas!”
- Emel se Culpava pelo que havia acontecido, e disse que eu poderia ter morrido. Disse até que não era digna de ser uma curandeira, se expunha a própria família a riscos como este. Percebi o estrago que fiz, e tentei remediar as coisas, disse a ela que a culpa era minha, que as aulas de AhDul me deixaram curiosa. Neste momento, lembro-me do silêncio que se formou na Clareira. A muito os Druidas tinham motivos para não gostar de AhDul, mas agora seus conselhos mal-dados tinham deixado uma criança cega e destruído a honra da Ordem.
- A culpada fui eu, mas os Druidas não viam desta forma. Tentaram expulsar AhDul da vila. Os anciões não permitiram que tal fosse o destino do Bardo. Apenas proibiram-no de ensinar. Era um Bardo, impedido de contar. E como tal, decidiu por si só abandonar a vila. Muitos anos depois, um viajante contou que AhDul fora morto, numa taverna, onde se engraçou com a esposa do taverneiro.
-Alguns dias depois do despertar escuro, eu já estava bem, Emel retirou a venda de meus olhos. Disse que estavam perfeitos (ainda que tivessem mudado de cor. Antes eram verdes, agora tinham um tom de castanho esverdeado, como folhas prestes a cair, no outono), que não haviam deformações. Ao mesmo tempo fiquei aliviada e horrorizada. Se não havia nada de errado, por que não enxergava? Muito tempo se passou, sem que eu tivesse sequer vontade de ouvir, quanto mais de contar. Com o tempo reaprendi a viver e meus ouvidos passaram a ser meus olhos. Voltei a cantar e contar, e por vezes conto esta história, quando acho que abrirá os olhos de alguns.
- Os Druidas até hoje não encontraram uma cura para mim. Mas aprendi uma lição, e vocês sabem qual é?
- Que os druidas são perigosos? – respondeu uma criança, amedrontada.
- Que não deve mexer no que não lhe pertence? – tentou outra.
- A respeitar o que os mais velhos dizem, mesmo que não entendamos? – perguntou outra, com um tom pomposo.
- A não ler coisas em línguas estranhas? – e outras sugestões foram dadas.
- Não – Disse Fraëa, apesar de ter gostado de algumas das respostas – Não, meus queridos, aprendi que o mundo não é dos curiosos, o mundo é dos Sábios. Sejam curiosos, mas sejam sábios e distingam quando a curiosidade é apenas uma vontade, e quando ela é necessária.